sábado, 23 de outubro de 2010

Cartas A Um Jovem Poeta - Sexta Carta

Roma, 23 de dezembro de 1903

  Meu caro Sr. Kappus,

   Não quero que fique sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa, carregar sua solidão mais difìcilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, que a sua solidão é grande, alegre-se com isto. Que seria, com efeito, uma solidão (faça esta pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer, por mais banal e barata que fôsse; por uma aparência de acôrdo insignificante com quem quer que seja; com a pessoa mais indigna. Mas talvez sejam estas, justamente, as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino triste como o comêço das primaveras. Mas tudo isto não o deve desorientar. O que se torna preciso, é no entanto isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve fazer alcançar. Estar sòzinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes porque êsses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações.
   Se depois um dia a gente descobre que suas ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem ligação algumas com a vida, por que não voltar a olhá-los outra vez como uma criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu próprio mundo, dos longes de sua própria solidão que é, por si só, trabalho, dignidade e profissão? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança pela defensiva e pelo desprêzo, - uma vez que a não compreensão significa solidão ao passo que na defensiva e desprêzo equivalem à participação nas próprias coisas cujo afastamento se deseja?
   Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro - o que importa apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima de tudo o que observar em redor. os seus acontecimentos interiores merecem todo o seu amor; nêles de certa maneira deve trabalhar e não perder demasiado tempo e coragem em esclarecer suas relações com os homens. Aliás, quem lhe diz que as tem? Sua profissão, bem o sei, é dura, cheia de contradições para si;  previ a sua queixa e sabia que ela havia de vir. Agora que chegou não o posso tranqüilizar, mas apenas aconselhar-lhe que examine se tôdas as profissões não são assim cheias de exigências, de hostilidade contra o indivíduo, como que ensopadas do ódio daqueles que, mudos, resmungando, se tiveram de conformar com o simples dever. A posição em que agora deve viver não é mais carregada de convenções, preconceitos e erros do que tôdas as outras. Se há algumas que exigem bem uma liberdade maior, não existe nenhuma que seja larga e ampla em si, relacionada com as grandes coisas de que se compõe a verdadeira vida. Mas o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis. Ao sair para a manhã que aponta, ao olhar para a noite cheia de eventos, se chega a sentir tudo o que aí acontece, todos os encargos se desprenderão no meio vibrante da vida. O que agora deve experimentar, caro Sr. Kappus, em sua qualidade oficial, tê-lo-ia sentido em qualquer das profissões existentes. Mesmo que, fora de qualquer pôsto, tivesse procurado apenas contatos leves e independentes com a sociedade, êste sentimento constrangedor não lhe seria poupado. - Por tôda parte as coisas são assim. Mas isto não é um motivo de angústia ou tristeza. Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noite e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando criança, tão tristes e tão felizes - e quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor.
   Se porventura lhe fôr temível e penoso pensar na sua infância, na simplicidade e no silêncio ligados a ela, por não poder mais crer em Deus que nela se encontrar por tôda a parte, então pergunte a si mesmo, caro Sr. Kappus, se realmente terá perdido a Deus. Não será, antes, que o senhor ainda não o possuiu? Aliás, quando o teria possuído? Parece-lhe que uma criança o possa segura, a Êle que os homens custam a carregar e cujo pêso esmaga os anciãos? Parece-lhe que alguém que realmente o possui o possa perder como um seixo? Não lhe parece, antes, que aquêle que o teve pode por Êle ser perdido? Se porém reconhece que Êle não existia na sua infância, nem antes; se admite que Cristo foi iludido pela sua saudade e Maomé enganado por seu orgulho; se percebe com espanto que Êle não existe nem mesmo nesta hora que falamos d´Êle - que coisa então o autoriza a sentir falta de alguém que nunca foi e a procurá-lo como se estivesse perdido?
   Por que não pensar que Êle é o vindouro, aquêle que está por vir desde a eternidade, o futuro, o fruto final da árvore de que nós somos as fôlhas? Que é que o impede de projetarcomêço? Não poderia ser, então, o comêço d´Êle, pois todo o comêço em si é tão belo? Se Êle é o mais perfeito, não deve ter havido algo menor antes d´Êle para que Êle se pudesse escolher a si mesmo dentro da plenitude e abundância? Não deverá ser Êle o último, para encerrar tudo em si Que sentido teria a nossa vida se Aquêle a que aspiramos já tivesse sido? Como as abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos. Começamos pelo pormenor, pelo insignificante (pôsto que venha do amor), depois pelo trabalho e pelo repouso, por um silêncio ou por uma pequena alegria solitária; por tudo o que fazemos, sem participantes ou aderentes. Iniciamos Êsse que não podemos compreender, do mesmo modo que os nossos antepassados não nos puderam compreender a nós mesmos. No entanto, êstes sêres desaparecidos há muito, estão em nós, em nossos pendores, pensando sôbre nosso destino, zumbindo em nosso sangue, emergindo num gesto que sobe do âmago dos tempos.
   Existe algo que lhe possa tirar a esperança de estar futuramente n'Êle, no longínquo, no extremo?
   Festeje o Natal, caro Sr. Kappus, com o pio sentimento de que talvez Êle, para começar, aguarde do senhor justamente esta angústia de viver. Talvez justamente êstes dias de transição sejam o tempo em que tudo no senhor trabalha n'Êle, como outrora, quando criança o senhor n'Êle trabalhou palpitante. Não seja impaciente e mal-humorado. Lembre-se de que a menor coisa que podemos fazer consiste em lhe dificultar tão pouco o nascimento quanto a terra dificulta o advento  da primavera, quando ela tem de vir.
           Fique alegre e tranqüilo.
                                   Seu
                                                   Rainer Maria Rilke

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