sábado, 23 de outubro de 2010

Cartas A Um Jovem Poeta - Décima Carta

Paris, dia seguinte ao Natal de 1908

   Deve imaginar, caro Sr. Kappus, como fique alegre em receber esta sua bela carta. As notícias que me dá, reais e concretas desta vez, parecem-me boas; sim, quanto mais as examino, tanto mais as acho efetivamente boas. Queria dizer-lhe isto pela véspera de Natal; mas, além do meu trabalho tão variado e contínuo êste inverno, a velha festa chegou tão depressa que mal me ficou tempo de tomar as medidas indispensáveis, e tive de reduzir minha correspondência.
   Mas pensei muito no senhor durante êsses dias de festa, imaginando como deve estar calmo lá na sua fortaleza solitária, no meio dos montes vazios, sôbre os quais se abatem os grandes ventos do Sul com tamanha fôrça como se os quisessem devorar.
   Imenso deve ser o silêncio em que há lugar para tais ruídos e movimentos. Pensando que a tudo isto se acrescenta ainda a presença do mar longínquo, talvez como o tom mais íntimo daquela sinfonia pré-histórica, não se pode senão desejar-lhe que, cheio de confiança e paciência, deixe trabalhar em seu aperfeiçoamento a grandiosa solidão que não mais poderá ser riscada de sua vida. Em tudo o que o senhor tiver de viver e fazer, ela agirá ininterrupta e silenciosamente como uma influência anônima, assim como o sangue dos antepassados se movimento em nós constantemente, misturando-se ao nosso e formando com êle a coisa única e irrepetível que somo em cada curva de nossa vida.
   Sim, alegro-me de que leve essa existência firme e concreta, com essa patente, êsse uniforme êsse serviço com tudo o que tem de tangível e limitado. Em tais ambientes, no meio de uma guarnição igualmente isolada e pouco numerosa, êle deve assumir um ar de grave necessidade. Acima do que a profissão militar tem de brincadeira e vadiação, êle deve significar uma aplicação vigilante que não só permite, como até educa a atenção independente. Encontrarmo-nos entre circunstâncias que operam em nós, que nos colocam, de vez em quando, diante das grandes coisas da natureza, eis tudo o que se faz mister.
   A arte também é apenas uma maneira de viver. A gente pode preparar-se para ela sem o saber, vivendo de qualquer forma. Em tudo o que é verdadeiro, está-se mais perto dela do que nas falsas profissões meio-artísticas. Estas, dando a ilusão de uma proximidade da arte, pràticamente negam e atacam a existência de qualquer arte. Assim o faz, mais ou menos, todo o jornalismo, quase tôda a crítica e três quartos daquilo que se chama e se quer chamar de literatura. Estou contente, numa palavra, de ver que o senhor resistiu à tentação de cair nelas e está vivendo no meio de uma áspera realidade, solitário e corajoso. Possa o ano que vem mantê-lo e confirmá-lo nela. Sempre seu

                                                                           Rainer Maria Rilke

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