sábado, 23 de outubro de 2010

Cartas A Um Jovem Poeta - Oitava Carta

Mais complicada.
Bogerby Gard, Flãdie, Suécia,
12 de agôsto de 1904

   Quero outra vez conversar consigo um momento, caro Sr. Kappus, embora quase nada lhe possa dizer de prestimoso, de útil. O senhor teve muitas e grandes tristezas, que passaram, e me diz que até  a sua passagem foi difícil e desenganadora. Mas, por favor, reflita: essas grandes tristezas não terão passado, antes, pelo âmago de seu ser? Muita coisa não se terá mudado dentro de si? Algum recanto de seu ser não se terá modificado enquanto estava triste? Perigosas e más são apenas as tristezas que levamos por entre os homens para abafar a sua voz. Como as doenças tratadas superficialmente e à toa, elas apenas se escondem e, depois de leve pausa, irrompem muito mais terríveis. Juntam-se no fundo da alma e forma uma vida não vivida, repudiada, perdida, de que se pode até morrer. Se nos fôsse possivel ver além dos limites de nosso saber e um pouco além da obra de preparação de nossos pressentimentos, talvez suportássemos nossas tristezas com maior confiança que nossas alegrias. São, com efeito, êsses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo de ignoto: nossos sentimentos emudecem com embaraçosa timidez, tudo em nós recua, levanta-se um silêncio e a novidade, que ninguém conhece, se ergue aí, calada, no meio.
   Parece-me que tôdas as nossas tristezas são momentos de tensão que consideramos paralisias porque já não ouvimos viver nossos sentimentos que se nos tornaram estranhos; porque estamos a sós com o estrangeiro que nos veio visitar; porque, num relance, todo o sentimento familiar e habitual nos abandonou; porque nos encontramos no meio de uma transição onde não podemos permanecer. Eis por que a tristeza também passa: a novidade em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, penetrou no seu mais íntimo recanto...Nem está mais lá. - já passou para o sangue. Não sabemos o que houve. Fàcilmente nos poderiam fazer crer que nada aconteceu; no entanto, ficamos transformado, como se transforma uma casa em que entra um hóspede. Não podemos dizer quem veio, talvez nunca o venhamos a saber, mas muitos sinais fazem crer que é o futuro que entra em nós dessa maneira para se transformar em nós mesmos muito antes de vir a acontecer. Por isso é tão importante estar só e atento quando se está triste. O momento, aparentemente anódino e imóvel, em que o nosso futuro entra em nós, está muito mais próximo da vida do que aquêle outro, sonoro e acidental, em que êle nos sobrevém como se chegasse de fora. Quanto mais estivermos silenciosos, pacientes e entregues à nossa mágoa, tanto mais profunda e imperturbável entra a novidade em nós, tanto melhor a conquistamos, tanto mais ela se tornará nosso destino e quando, num dia ulterior, vier a "acontecer" - isto é, quando sair de nós para se chegar a outros - senti-la-emos familiar e próxima. Deve ser assim. É preciso - e a nossa evolução, aos poucos, há de processar-se nesse sentido - que nada de estranho nos possa advir, senão o que nos pertence desde há muito. Já se modificaram muitas noções relativas ao movimento; há de se reconhecer, aos poucos, que aquilo a que chamamos do destino sai de dentro dos homens em vez de entrar nêles. Muitas pessoas não percebem o que dela saiu, porque não absorveram o seu destino enquanto o viviam, nem o transformaram em si mesmas. Afigurou-se-lhes tão estranho que, em seu confuso espanto, julgavam-no saído delas justamente naquele momento, e juravam nunca antes ter encontrado em si algo parecido. Como os homens durante muito tempo se iludiram acêrca do movimento do sol, assim se enganam ainda em relação ao movimento do que está para vir. O futuro está firme, caro Sr. Kappus, nós é que nos movimentamos no espaço infinito.
   Como pois, não seria difícil a nossa sorte?
   Falando novamente em solidão, torna-se cada vez mais evidente que ela não é, na realidade, uma coisa que nos seja possível tomar ou deixar. Somos nós. Podemos enganar-nos a êste respeito e agir como se não fôsse assim; nada mais. Mas quão melhor é admitir que se é só, e mesmo partir daí. Naturalmente, começaremos por sentir tonturas, pois todos os pontos em que costumávamos descansar os olhos nos são retirados, não há mais nada perto e os longes ficam todos infinitamente longes. Aquêle que, tirado de seu quarto, sem preparação nem transição, se visse transportado de chôfre para o cume de uma alta montanha, deveria sentir algo de semelhante: sentir-se-ia como que aniquilado por uma incerteza sem igual, pela impressão de estar entregue ao inominável. Julgaria estar caindo, arrastado pelos ares ou despedaçado. Seu cérebro deveria inventar alguma mentira enorme para alcançar e esclarecer o estado de seus sentidos. Dessa maneira é que se alteram, para quem se torna solitário, tôdas as distâncias, tôdas as medidas. Muitas dessas transformações se verificam repentinamente e, como no homem colocado no cume da montanha, produzem-se então imaginações insólitas e estranhas sensações cujas proporções parecem insuportáveis. Mas é preciso vivermos também isso. Temos que aceitar a nossa existência em tôda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. Por se terem os homens revelado covardes neste sentido, foi a vida prejudicada imensamente. As experiências a que se dá o nome de "aparecimentos" , todo o pretenso mundo "sobrenatural", a morte, tôdas essas coisas tão próximas de nós têm sido excluídas da vida, por uma defensiva cotidiana, que os sentidos com os quais as poderíamos aferrar se atrofiaram. Nem falo em Deus. Mas a ânsia em face do inesclarecível não empobreceu apenas a existência do indivíduo, como também as relações de homem para homem, que por assim foram retiradas do leito de um rio de possibilidades infindas para ficarem num êrmo lugar da praia, fora dos acontecimentos. Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa tão indizível monotonia em cada caso; é também o mêdo de algum acontecimento novo, incalculável, frente ao qual não nos sentimos bastante fortes. Sòmente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência. Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança. Entretanto, quão mais humana, aquela perigosa incerteza que faz os prisioneiros dos contos de Poe apalparem as formas de suas terríveis prisões e não desconhecerem os indizíveis horrores de sua moradia. Nós outros, aliás, não somos prisioneiros. Em redor de nós não há armadilhas e laços, nada que nos deva angustiar ou atormentar. Estamos colocados no meio da vida como no elemento que mais nos convém. Também, em conseqüência de uma adaptação milenar, tornamo-nos tão parecidos com ela que, graças a um feliz mimetismo, se permanecermos calados, quase não poderemos ser distinguidos de tudo o que nos rodeia. Não temos motivos de desconfiar de nosso mundo, pois êle não nos é hostil. Havendo nêle espantos, são os nossos; abismos, êles nos pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Se conseguirmos organizar a nossa vida segundo ao princípio que aconselha agarrarmo-nos sempre ao difícil o que nos parece muito estranho agora há de tornar-se o nosso bem mais familiar, mais fiel.Como esquecer os mitos antigos que se encontram no comêço de cada povo: os dos dragões que num momento supremo se transformaram em princesas? Talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas que aguardam apenas o momento de nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo o horror, em última análise, não passe de um desamparo que implora o nosso auxílio.
   Também não se deve assustar, caro Sr. Kappus, se uma tristeza se levantar na sua frente, tão grande como nunca viu; se uma inquietação lhe passar pelas mãos e por tôdas as ações como uma luz ou a sombra de uma nuvem. Deve pensar então que algo está acontecendo em si, que a vida não o esqueceu, que o segura e sua mão e não o deixará cair. Por que deseja excluir de sua vida tôda e qualquer inquietação, dor e melancolia, quando não sabe como tais circunstâncias trabalham em seu aperfeiçoamento? Para que perseguir-se a si mesmo com a pergunta: de onde pode vir tudo aquilo e para onde vai? Não sabia estar em transição? Desejava algo melhor do que transformar-se? Se algum ato seu fôr doentio, lembre-se de que a doença é o meio de que o organismo se serve para se libertar de um corpo estranho; é só ajudá-lo a ficar doente, ter tôda a sua doença e deixar a esta o seu curso. Em si, caro Sr. Kappus, está acontecendo tanta coisa. Deve ter a paciência de um doente e a confiança de um convalescente, pois talvez seja um e outro. Mais ainda: o senhor é também o médico que se deve vigiar a si mesmo. Em muitas doenças, porém, há dias em que o médico nada pode fazer senão esperar. É o que o senhor deve fazer agora, porquanto é seu próprio médico.
   Não se observe demais. Não tire conclusões demasiadamente apressadas do que lhe acontece; deixe as coisas acontecerem. Senão chegará fàcilmente a encarar com censuras (morais) o seu passado, que naturalmente é responsável em parte do que lhe ocorre agora. Mas o que, dos erros, dos desejos e das saudades de sua adolescência, está agindo em si, não é o que o senhor lembra e condena. As condições excepcionais de uma infância solitária e desamparada são tão difíceis e complexas, submetidas a tantas influências e, ao mesmo tempo, tão alheias a tôdas as conexões reais da vida que ali onde aparece um vício não se lhe deve dar simplesmente êsse nome. Em geral, deve-se ter muita precaução com os nomes. Tão freqüentemente uma vida naufraga no nome de um crime e não na própria ação, pessoal e sem nome, que talvez tenha sido uma necessidade inelutável dessa vida e tenha sido acolhida facilmente por ela! O consumo de fôrças se lhe apresenta tão grande apenas porque sobrestima a vitória. O "grandioso" não foi aquilo que o senhor pensa ter cumprido (embora seu sentimento tenha razão) - mas o fato de já ter existido algo que o senhor pôde colocar em lugar daquele engano, algo de real e verdadeiro. Sem isto, o seu triunfo também teria sido apenas uma reação moral, sem significação ampla; com êle, tornou-se uma seção de sua vida. De sua vida, caro Sr. Kappus, na qual penso com tantos bons votos. Lembra-se como esta vida, desde a infância, aspirava aos "grandes". Vejo-a abandonar agora o grande para chegar aos maiores. Eis por que não cessa de ser difícil, mas tão pouco cessará de crescer.
   Se lhe puder dizer alguma coisa mais é isto: Não pense que aquêle que o procurar consolar levar uma vida descansada no meio das palavras simples e descretas que às vêzes fazem bem ao senhor. A vida dêle comporta muito sacrifício e muita tristeza e fica-lhes muito atrás. Mas se assim não fôsse, êle nunca podia ter encontrado aquelas palavras.

                                          Seu
                                Rainer Maria Rilke

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