sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Cartas A Um Jovem Poeta - Quarta Carta

De passagem por Worpswede, perto de Bremen,
16 de Julho de 1903.

   Deixei Paris há uns dez dias, bastante indisposto e cansado, e vim para esta grande planície nórdica cuja vastidão, silêncio e céu hão de curar-me outra vez. Mas entrei logo numa longa chuva, que sòmente hoje deixou um pouco de claridade sôbre o país sacudido de inquietação. Aproveito êste primeiro momento de luz para cumprimentá-lo, caro senhor.
   Querido Sr. Kappus, deixei uma carta sua sem resposta durante muito tempo. Isto não quer dizer que o tenha esquecido. Pelo contrário. É uma daquelas cartas que a gente relê cada vez que as volta a encontrar entre as outras. Nela o reconheci como se estivesse muito perto de mim. Era sua carta de dois de maio, que provàvelmente não terá esquecido. Ao lê-la, como o faço agora, no grande silêncio dêstes longes, sinto-me comovido por sua bela preocupação com a vida, mais ainda do que me senti em Paris onde tudo ressoa e esmorece de outro modo, devido ao excessivo barulho que faz as coisas estremecerem. Aqui, tendo em redor de mim uma possante região sôbre a qual passam ventos vindos dos mares, bem sinto que nenhum homem pode responder às perguntas e aos sentimentos que têm vida própria no âmago de seu ser. Mesmo os melhores se enganam no uso das palavras quando estas têm de significar o que há de mais discreto, de quase indizível. Creio, contudo, que o senhor não deixará de encontrar uma solução, se se agarrar a coisas que se assemelham a si, como as que agora dão repouso aos meus olhos. Se se agarrar à natureza, ao que ela tem de simples, à miudeza que quase ninguém vê e que tão inesperadamente se pode tornar grande e incomensurável; se possuir êste amor ao insignificante; se procurar singelamente ganhar como um servidor a confiança daquilo que parece pobre - então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso, e por assim dizer, reconciliador, - não talvez no intelecto, que ficará atrás espantado, mas sim na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe. O senhor é tão moço, tão aquém de todo começar que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta. Quiçá carregue em si a possibilidade de criar e moldar, - como uma maneira de ser particularmente feliz e pura. Eduque-se para isto, mas aceite o que vier com tôda a confiança. Se vier só da sua vontade, de qualquer necessidade de seu ser íntimo, aceite-o e não o odeie. A carne é um pêso difícil de se carregar. Mas é difícil o que nos incumbiram; quase tudo o que é grave é difícil: e tudo é grave. Se chegar a reconhecer isto e alcançar, - partindo de si, de sua inclinação e de sua maneira de ser, de sua experiência e infância - uma relação inteiramente sua (livre de convenções e costumes) com a carne, não mais deverá temer o perder-se e o tornar-se indigno de sua posse mais preciosa.
   A volúpia carnal é uma experiência dos sentidos, análoga ao simples olhar ou à simples sensação com que um belo fruto enche a língua. É uma grande experiência sem fim que nos é dada; um conhecimento do mundo; a plenitude e o esplendor de todo o saber. O mal não é que nós a aceitemos; o mal consiste em quase todos abusarem dessa experiência, malbaratando-a fazendo dela um mero estímulo para os momentos cansados de sua existência, uma simples distração, em vez de uma concentração interior para as alturas. Até o comer, os homens transformaram em algo diferente: a carência de um lado, o excesso de outro perturbaram a clareza desta necesssidade; e tôdas as necessidades elementares em que a vida se renova tornaram-se igualmente turvas. O indivíduo, porém, pode esclarecê-las  para si mesmo e vivê-las às claras (não todos os indivíduos, demasiado dependentes, mas pelo menos os solitários). Êstes podem lembrar-se de que tôda beleza em animais e plantas é uma forma silenciosa e durável de amor e desejo; e podem ver o animal como a planta, unindo-se, multiplicando-se e crescendo paciente e dòcilmente, não por gôzo físico nem por dor física, mas curvando-se diante de necessidades maiores que a volúpia e a dor e mais poderosas que a vontade e a resistência. Pudesse o homem acolher com maior humildade êste segrêdo de que a terra está cheia até em suas coisas mais ínfimas; carregá-lo e suportá-lo com mais gravidade, sentindo-lhe o pêso - em vez de o tratar com leviandade. Pudesse ter respeito para com a própria fecundidade, que é uma só, embora pareça ora espiritual ora corporal. A criação intelectual, com efeito, provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição mais silenciosa, enlevada e eterna da volúpia do corpo. "A idéia de ser criador, de gerar, de moldar" não é nada sem sua grande e perpétua confirmação na vida; nada sem o consenso mil vêzes repetido das coisas e dos animais. Seu gôzo não é tão indescritivelmente belo e rico senão porque está cheio de reminiscências herdadas da geração e de parte de milhões de sêres. Numa idéia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude. Aquêles que se juntam à noite e se entralaçam num baloiçar de volúpia, executam obra grave, reunindo doçuras, profundezas e fôrças para a canção de algum poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres. Êles estão evocando o futuro; mesmo que estejam enganados, que se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo; um homem novo se há de erguer. Sôbre a base do acaso que parece cumprir-se nesse abraço, acordar a lei que faz com que um germe forte e poderoso avance até o óvulo que vem aberto a seu encontro. Não se deixe enganar pela superfície: - nas profundidades tudo se torna lei. Aquêles que vivem mal êste segredo (é o caso da maioria), perdem-no apenas para si mesmos, pois transmitem-no a outros como uma carta lacrada sem o saberem. Não se deixe iludir pela multiplicidade dos nomes ou pela complicação dos casos. Talvez paire acima de tudo uma imena maternidade, um comum desejo. A beleza da virgem, um ser "que - como diz com tanto acêrto - ainda não cumpriu nada" é maternidade que se pressente e se prepara, que anseia e deseja. A beleza da mãe é a maternidade que serve; a da anciã uma grande recordação. No próprio homem, parece-me, há maternidade carnal e espiritual; a sua criação também é uma maneira de dar à luz. Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo talvez resida nisto: o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos falsos, de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contrastes, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade que difícil que lhes foi imposta.
   Mas tudo isto que talvez um dia seja possível a muitos, o solitário pode prepará-lo desde já, e construí-lo com sua mãos, que erram menos. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Diz que os que sente próximos estão longe. Isto mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrêlas, são imensos. Alegre-se com esta imensidade, para qual não pode carregar ninguém consigo. Seja bom para com os que ficarem atrás, mostre-se-lhes calmo e sereno sem os atormentar com suas dúvidas, nem os assustar com uma confiança ou uma alegria que êles não poderão compreender. Procure realizar com êles uma comunhão qualquer, fiel e simples, que não se deverá necessàriamente transformar à medida que o senhor mesmo se transforme. Ame nêles a vida sob uma forma estrangeira e tenha indulgência com os homens que, envelhecidos, temem a solidão a que o senhor se confia. Evite dar alimento ao drama sempre pendente entre pais e filhos o qual gasta muito fôrça dêstes e consome o amor daquêles; amor que, embora incompreensivo, age e aquece. Não lhes peça conselho e não conte com a sua compreensão, mas acredite num amor que lhe é conservado como uma herança e fique certo de que há nesse amor uma fôrça e ma bênção a que não se arrancará mesmo se fôr para muito longe.
   É bom o senhor abraçar antes de tudo uma profissão, que o tornará independente e o entregará exclusivamente a si, em todos os sentidos. Aguarde com paciência, a ver se a sua vida íntima se sente limitada pela forma dessa profissão; considero-a muito difícil e cheia de exigências, carregada de convenções e quase sem margem para uma interpretação pessoal de seus deveres. Mas a sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela encontrará todos os caminhos. Todos os seus desejos estão prontos a acompanhá-lo e minha confiança está consigo.

                                                                                                 Seu
                                                                                             Rainer Maria Rilke

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