domingo, 29 de maio de 2011

Por detrás dos óculos

Chego todos os dias, passo pelo labirinto de cabines, recolho papéis e sento em minha mesa, onde começo minha própria odisséia matinal. Uma caneca de café já me espera ao lado do monitor e sob ela um papel, que deveria ser uma anotação, uma informação, um bilhete, um lembrete, uma oração; sei lá, a água do fundo da caneca apagou o que estava escrito. E, sinceramente, já nem ligo mais. Acerto os óculos e começo: fichas, reclamações, inquéritos, formulários... Antes tivessem molhado o computador em vez de o bilhete, minha nossa! Pausa. Olho por cimas dos óculos. A Cláudia, pinta as unhas em vez de trabalhar, um clichê de qualquer repartição por aí; o Robson só come, será que ele não vê o quão gordo está ficando? Vai precisar de uma cabine maior assim; a Júlia no telefone, mas só porque não está reclamando com a Cláudia do namorado, você se supreenderia com a insatisfação dela, ocupa uma semana de falatório, de fofoca, aquela voz fina me dá nos nervos. E eu estou velho, esqueço-me das coisas com facilidade... Minha mulher me liga. Pergunta se não posso sair mais cedo, quer fazer algo diferente. "Meu horário é apertado, estou cheio de trabalho". "Temos que planejar nossa viagem". "Eu sei". Ela desliga. Aparentemente desapontada, eu entendo. Ainda me pergunto por que trabalho tanto, olhe essas pessoas ao meu redor! Largo tudo de mão, nada mais faz sentido, acabou. Ou melhor, começou: temos a tarde inteira ainda, um sopro de liberdade.